} Crítica Retrô: October 2017

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Friday, October 27, 2017

Uma Página de Loucura (1926) / A Page of Madness (1926)

Eu adoro receber recomendações de filmes – em especial quando estes filmes são recomendados por pessoas cultas. Eu confio no gosto da Nora Fiore (mais conhecida como The Nitrate Diva) em relação a filmes. Ela é uma jovem da geração millennial que, além de inteligente e talentosa, ama tanto clássicos quanto eu. Por isso eu adicionei “Uma Página de Loucura” (1926) à minha lista de filmes assim que ela o recomendou neste post.

I love movie recommendations – especially when they come from knowledgeable people. I really rely on Nora Fiore’s (aka The Nitrate Diva’s) taste on film. She is a wise and talented millennial who shares my passion for classics. That’s why I added “A Page of Madness” (1926) to my watch list when she recommended the film in this post.

Enquanto a chuva cai lá fora, os pacientes em um hospício são acompanhados apenas por seus delírios. Uma garota dança sem parar em sua cela, imaginando que é uma bailarina ou uma deusa, e os trovões são os instrumentos criando a música para sua performance. Uma mulher está deitada no chão de sua cela, e apenas olha pra cima para ver o zelador. Mas há muito neste olhar: o zelador e a paciente são marido e esposa. Ele quer que ela, e todos os outros pacientes, sejam libertados daquele inferno.

While the rain falls outside, the patients inside an insane asylum are left with their deliriums. One girl dances nonstop in her cell, imagining she is a performer or a goddess, and the thunders are the instruments making the music for her ballet. A woman lies on the floor of her cell, only looking up to see the janitor. But there is a lot in this look: the janitor and the patient are husband and wife. He wants to take her, and eventually all patients, out of that hell.

Você percebeu que eu usei a palavra “cela” em vez de “quarto” para me referir ao espaço que cada paciente ocupa, não? Bem, eu tenho razões para a escolha da palavra: este é, de fato, um ambiente que parece uma prisão. Há um portão de ferro na entrada da ala, e cada paciente é também preso atrás de grades.

You noticed that I wrote “cell” instead of “room” to talk about the space each patient has, didn’t you? Well, I have a reason: it is, indeed, an environment like a prison. There is an iron gate made in the room entrance, and each patient is also kept behind bars.
É possível ver reflexos de muitos filmes e movimentos nesta película. A influência de Caligari é a mais óbvia: “Uma Página de Loucura” conta uma história que se passa em um hospício, e tem muitas sombras. Há tomadas angulosas e de cabeça para baixo. Ângulos de câmera ousados e truques com a câmera dão origem a imagens distorcidas.

You can see many films and movements reflected in this film. The Caligari influence is the most obvious: “A Page of Madness” is a film set in an insane asylum, and has lots of shadows. There are angular and upside-down shots. Unusual camera angles and wise camera tricks create distorted images.

Em muitos momentos, a edição é tão frenética e nauseante quanto o melhor de Eisenstein. Isso acontece logo no começo do filme. Na teoria da montagem soviética, a maneira e velocidade com que as imagens são editadas evocam um sentimento ou ideia. Em “Uma Página de Loucura”, a montagem nos ajuda a entrar nas mentes dos pacientes.

In many moments, the editing is as frantic and dizzying as the best Eisenstein. This happens right in the beginning of the movie. In the Soviet montage, the way and speed images are edited together evoke a feeling or idea. In “A Page of Madness”, the montage actually helps us enter the patients’ minds.

Assim como “A Última Gargalhada” (1924), de Murnau, “Uma Página de Loucura” não tem intertítulos. Algumas pessoas podem pensar que aí está a genialidade do filme, enquanto outras podem ficar incomodadas e confusas com a falta de explicações. Você consegue entender perfeitamente a narrativa de “A Última Gargalhada”, mas em “Uma Página de Loucura” muitas hipóteses podem surgir devido à ausência de intertítulos. Não nos esqueçamos que o cinema nunca foi mudo no Japão – até os anos 1930, ele foi narrado por artistas conhecidos como Benshi.

Just like Murnau’s “The Last Laugh” (1924), “A Page of Madness” has no intertitles. Some people may think this is where the geniality of the film lies, while others may be bothered and confused by the lack of explanation. If you can understand perfectly what is going on in “The Last Laugh”, in “A Page of Madness” many hypothesis and interpretations are originated from the lack of intertitles. Let’s not forget that there was never a truly silent cinema in Japan – until the 1930s, movies were narrated by artists called Benshi.

Devemos nos lembrar de que “O Gabinete do Dr Caligari” estreou em 1920, os filmes soviéticos com edição ousada como “Greve” e “O Encouraçado Potemkin” são, respectivamente, de 1924 e 1925, e “A Última Gargalhada” estreou em 1924. Estes filmes chegaram ao Japão em tempo de influenciar “Uma Página de Loucura”?

We must remember that “The Cabinet of Dr Caligari” was released in 1920, the heavily edited Soviet movies “Strike” and “Battleship Potemkin” are, respectively, from 1924 and 1925, and “The Last Laugh” was released in 1924. Did all these works arrive in Japan in time to influence “A Page of Madness”?

“O Gabinete do Dr Caligari” certamente chegou a tempo: de acordo com o IMDb, o filme estreou no Japão em 1921. “A Última Gargalhada” foi visto cinco vezes pelo diretor Teinosuke Kinugasa, que inclusive o classificou como seu filme favorito em uma entrevista em 1926. De acordo com o IMDb, os filmes soviéticos só foram exibidos no Japão nos anos 60. Kinugasa tinha outras influências em mente quando filmou “Uma Página de Loucura”.

“The Cabinet of Dr Caligari” certainly arrived in time: according to IMDb, the film was released in Japan in 1921.”The Last Laugh” was seen five times by director Teinosuke Kinugasa, who also cited it as his favorite film in an interview in 1926. According to IMDb, the Soviet films were seen in Japan only in the 1960s. Kinugasa had other influences in mind when he was shooting “A Page of Madness”.
Teinosuke Kinugasa
O mundo todo estava fazendo experimentos nos anos 20. Nas artes, havia o Surrealismo, Dadaísmo, Art Deco e Expressionismo. É possível ver um pouco de cada um em “Uma Página de Loucura”. Kinugasa também tinha um grupo envolvido com vanguardas artísticas trabalhando para ele atrás das câmeras. No circuito cinematográfico, havia muitas discussões no Japão acerca dos filmes Impressionistas de Abel Gance e Marcel L’Herbier.

The whole world was experimenting in the 1920s. In the arts, we had Surrealism, Dadaism, Art Deco and Expressionism. You can see a little bit of them all in “A Page of Madness”. Kinugasa also had a group of avant-garde lovers helping him behind the cameras. In the film circles, there was a lot of discussing in Japan about the Impressionist works by Abel Gance and Marcel L’Herbier.

“Uma Página de Loucura” pode assustar você, com certeza – especialmente se você tiver alguma coisa contra máscaras sem expressão. Eu ficaria assustada se tivesse visto este filme quando era mais nova. Mas o terror real é perceber como eram – e infelizmente ainda são – tratadas as pessoas que não se encaixam no padrão de “sanidade”.

“A Page of Madness” can scare you, sure – especially if you have something against expressionless masks. I’d be scared if I watched this film when I was younger. But the real horror here is realizing how badly people who don’t follow a “sanity” pattern were – and unfortunately still are – treated.

Talvez você ame “Uma Página de Loucura”. Talvez você o odeie. Talvez você tenha de assisti-lo muitas vezes, e a cada vez encontrar novos significados. Mas você não poderá ficar indiferente em relação a “Uma Página de Loucura”.

You may love “A Page of Madness”. You may hate it. You may have to watch the movie several times and, each time, find more meanings. But you can’t be indifferent after watching “A Page of Madness”.


This is my contribution to the Horrorathon, hosted by Maddy at Maddylovesherclassicfilms.

Saturday, October 21, 2017

O Bígamo (1953) / The Bigamist (1953)

Na era clássica de Hollywood, havia poucas mulheres diretoras. Obviamente, havia algumas mulheres fazendo filmes experimentais, mas dentro dos estúdios, com acesso a um bom elenco, equipe e orçamento, havia apenas duas: Dorothy Arzner e Ida Lupino. Arzner trabalhou nos anos 30 e 40, e Lupino veio logo depois, trabalhando nos anos 50 e 60. Ida Lupino dirigiu 41 filmes e episódios de séries e TV entre 1939 e 1968. Hoje falaremos de um de seus mais conhecidos filmes, “O Bígamo”, de 1953.

In the classic Hollywood era, there were very few female directors. Sure, there were some doing experimental work, but inside the big studios, with access to a good cast, crew and budget, there were only two: Dorothy Arzner and Ida Lupino. Arzner worked in the 1930s and 40s, and Lupino came next, working in the 1950s and 60s. Lupino directed 41 movies and TV episodes between 1939 and 1968. Today we’ll talk about one of her most famous movies, 1953’s “The Bigamist”.

 


Harry Graham (Edmond O’Brien) e sua esposa Eve (Joan Fontaine) querem adotar uma criança. Eles vão até uma agência de adoção e preenchem a papelada. O próximo passo é uma rápida investigação sobre a vida do casal, levada a cabo pelo senhor Jordan (Edmund Gwenn). Harry se mostra relutante e desconfortável com a investigação. O casal Graham vive em San Francisco, mas Harry viaja com frequência para trabalhar em Los Angeles. O senhor Jordan segue Harry até LA, e descobre que ele tem uma segunda família, completa com um filho bebê e uma esposa, Phillys (a própria Ida Lupino).

Harry Graham (Edmond O'Brien) and his wife Eve (Joan Fontaine) want to adopt a child. They go to an adoption agency and fill in all the forms. The next step is a quick investigation about their lives, made by Mr Jordan (Edmund Gwenn). Harry is reluctant and uncomfortable about this investigation. The Grahams live in San Francisco, but Harry travels often to Los Angeles to work. Mr Jordan follows Harry until LA, and finds out he has another family there, complete with a baby son and a wife, Phyllis (Ida Lupino herself).



Depois de descobrirem que não podem ter filhos, Harry e Eve começam a trabalhar juntos na área de vendas, e ela rapidamente dobra os lucros dele. Ela fica cada vez mais interessada no trabalho. Ele fica cada vez mais frustrado com o novo interesse dela. Quando vai para Los Angeles para uma viagem entediante, ele faz um passeio de ônibus e conhece uma mulher igualmente entediada – Phyllis. Com o tempo, o relacionamento deles se desenvolve.

After finding out they couldn't have children, Harry says Eve started working with him in the sales business, and quickly doubled his sales. She becomes more and more invested in working. He becomes more and more bummed by her new interest. When he goes to a boring business trip to Los Angeles, he takes a bus tour and meets an equally bored woman – Phyllis. With time, they get involved. 


Há traços do noir em “O Bígamo”? Claro. Primeiro, você tem uma história contada em flashback. E várias escolhas estilísticas são puro noir: a inclusão de lâmpadas no enquadramento e as muitas sombras que têm origens em cortinas, janelas e paredes, por exemplo. Entretanto, não é um noir, não é um drama familiar, não é de maneira alguma um romance. Mas é real, e é uma golfada de ar fresco no sistema de estúdio, que na maioria das vezes trabalhava como uma linha de produção.

Are there noirish traces in “The Bigamist”? Sure. First, you have a story told in flashback. Also, many stylistic choices scream noir: the inclusion of lamps in the frame and the many shadows cast by curtains, windows and walls, for instance. However, it's not a noir, it's not a family drama, it's not a romance at all. But it's real, and it's a blow of fresh air in the studio system, that more often than not worked like an assembly line.


Não era a primeira vez que Joan Fontaine interpretava uma personagem com problemas conjugais – quem pode se esquecer de seu trabalho em “Rebecca” (1940), como a segunda senhora De Winter? Sim, Harry até tenta confessar para Eve que a está traindo quando a traição ainda nem havia sido consumada, mas ela muda de assunto. Neste exato momento do filme, vemos como Eve é insegura. Infelizmente, Joan Fontaine não tem muito mais o que fazer a não ser mostrar algumas expressões faciais significativas perto do final.

It was not the first time Joan Fontaine played a character with marital problems – who can forget her work in “Rebecca” (1940), as the second Mrs De Winter? Sure, Harry does try to tell Eve about his cheating when it wasn't even cheating yet, but she changes the subject. In this exact moment in the film, we see how insecure Eve is. Unfortunately, Joan Fontaine doesn't have much more to do than to showcase some meaningful facial expressions near the end. 


E é muito interessante saber que Ida Lupino e Joan Fontaine foram quase rivais de verdade na vida amorosa. A história não é tão surpreendente ou patética quanto a do filme: o roteirista Collier Young, sócio de Lupino na produtora independente The Filmakers, foi casado com Ida Lupino entre 1948 e 1951. Um ano depois, ele se casou com Joan Fontaine, com quem ficou até 1961. A situação não criou um clima ruim nos bastidores de “O Bígamo”, e com frequência os dois casais socializavam – Collier e Joan, Ida e seu novo marido, Howard Duff.

And it’s extra interesting to know that Ida Lupino and Joan Fontaine were almost romantic rivals in real life. The story is not nearly as salacious or pathetic as the one in the film: screenwriter Collier Young, Lupino’s partner in the independent film production company The Filmakers, was married to Ida Lupino from 1948 until 1951. The next year, he married Joan Fontaine, and the two remained together until 1961. The situation didn’t interfere with the mood during filming “The Bigamist”, and the two couples frequently had fun together – Young and Fontaine, Lupino and her new husband Howard Duff.


Collier Young, Joan Fontaine, Ida Lupino
 

Esta não é uma lição de moral. “O Bígamo” não tem a intenção de ensinar algo ao espectador, nem de julgar seus personagens. Há um dilema moral, sim, mas Harry não é retratado como mulherengo e Phyllis não é retratada como destruidora de lares. E devemos isso a Ida Lupino.

This is not a cautionary tale. “The Bigamist” is not supposed to teach something to the viewer, and not even to judge its characters. There is a moral dilemma, sure, but Harry is not portrayed as a womanizer and Phyllis is not portrayed as a home wrecker. And we owe this to Ida Lupino.


Ida Lupino era uma boa diretora, mas eu bem que gostaria que ela fosse mais ousada e inovadora. Para ser aprovada pelos censores do código Hays, “O Bígamo” tinha de ser incrivelmente cuidadoso – o próprio assunto do filme era muito ousado. Por isso há muitos eufemismos para que finalmente seja revelado que Phyllis está grávida de um filho de Harry. Eu entendo completamente por que Ida teve de fazer isso.

Ida Lupino was a good director, but I wish she was more daring and groundbreaking. To be approved by the Hays Office, “The Bigamist” had to be extra cautious – the subject matter in itself was very bold. That's why there is a lot of euphemisms to finally tell that Phyllis is pregnant with Harry's child. I completely understand why Ida had to do this.


Mr Jordan (Edmund Gwenn)

Ida Lupino era uma mulher fazendo um filme centrado num personagem masculino. Eu adoraria ver as duas esposas contando as versões delas da história, compartilhando seus pensamentos e sentimentos. Eu adoraria se Ida tivesse dado voz a estas mulheres. Eu sei que seria bem difícil, considerando a época, mas também seria incrível e histórico.

Ida Lupino was a woman directing a picture centered in a man. I'd love to see the two wives telling their versions of the story, sharing with us their thoughts and feelings. I'd love if Ida had given those women a voice. I know it'd be quite hard for the time period, but it'd also be amazing and historic.


Infelizmente, mesmo tendo Ida Lupino muito jeito para aos negócios, “O Bígamo” não foi um sucesso de bilheteria. Ida Lupino e Collier Young decidiram distribuir o filme de maneira independente, o que certamente afetou a performance na bilheteria. Ida Lupino se dedicou à televisão, e só voltaria a dirigir outro filme 13 anos depois. Isso é uma pensa, porque “O Bígamo” é um filme interessante – e, se no final nós não nos importamos com o destino de Harry e suas duas esposas, isso é um trunfo de Ida Lupino e seu gosto por histórias diferentes.

Unfortunately, even with Lupino’s great brains for business, “The Bigamist” didn’t do well at the box office. Lupino and Young had decided to distribute the picture in an independent way, and it certainly hurt the performance. Ida Lupino started directing more television, and only directed another movie 13 years later. This is too bad, because “The Bigamist” is an interesting flick – and, after all, if by the end we don’t really care about which wife wants Harry back, it’s because of Ida Lupino’s taste for unique stories.

 

This is my contribution to the Joan Fontaine Centenary blogathon hosted by Virginie at The Wonderful World of Cinema and Crystal at In the Good Old Days of Classic Hollywood.