Metonímia é uma figura de linguagem que substitui o todo pela parte. Assim,
um só indivíduo pode se tornar parâmetro para uma comunidade ou um povo
inteiro. Foi assim que Nanook se transformou no esquimó-modelo: o astro do
documentário de Robert J. Flaherty tipificou um povo e apresentou-o ao mundo.
Como o próprio Flaherty nota no prefácio, a expedição não tinha intenção de
transformar a vida dos esquimós em filme, Flaherty não tinha nenhuma
experiência no cinema e sua primeira tentativa, consumida pelas chamas, nem era
muito boa. Mas o assunto era tão interessante quanto um show de horrores, e a
morte do protagonista logo após as filmagens deu um impulso de marketing
inesperado e auspicioso.
Apesar das condições naturais desafiadoras, os esquimós são
apresentados como o povo mais feliz do planeta: alegres, destemidos e amáveis.
E a vida era muito, muito difícil! Num ambiente congelante, nunca se sabe de
onde virá a próxima refeição que, aliás, deve ser caçada pelos próprios
esquimós. Além da grande família, as focas e leões-marinhos abatidos alimentam
os cachorros, e as raposas pegas são levadas para postos de troca onde o
esquimó tem seu único contato com o homem branco.
O escambo é muito similar ao praticado entre índios e colonizadores:
os esquimós trocam dezenas de peles de raposa branca por contas, facas e doces
do homem branco. É o retrato do bom selvagem, que se surpreende com um
gramofone e para quem, de fato, a ignorância é uma virtude.
E é aí que surgem as duas perguntas mais importantes sobre o filme.
Primeiro: como coube tanta gente em um caiaque tão pequeno? Segundo, e mais
importante: qual é o limite entre ficção e documentário?
Os esquimós tinham a noção de que estavam sendo filmados, embora o
conceito de cinema fosse alienígena para eles. E só saber que você está sendo
filmado já muda o comportamento, ainda que inconscientemente. Então os
documentários válidos são apenas aqueles filmados com câmeras escondidas?
Pensando assim, os irmãos Lumière têm mais de documentaristas que o
primeiro documentarista do cinema, Flaherty. Como espectador do mundo, Flaherty
prestava muita atenção nas comunidades em que se infiltrava (ele fez o mesmo
com seu documentário seguinte, “Moana”, de 1926). Flaherty tinha uma técnica de
imersão inovadora, e isso o destaca dos outros documentaristas.
Não há nada de espontâneo em nossos personagens. Nanook se chama, na
verdade, Allakariallak (Nanook, além de ser um nome muito mais simples, é uma
divindade da mitologia esquimó, representada por um urso polar). A esposa de
Nanook, Nyla, nada tinha a ver com ele, e se envolveu romanticamente com o
diretor Robert J. Flaherty. Segundo alguns testemunhos, Flaherty abandonou-a
grávida e nunca reconheceu o filho que ela teve.O filme também ensina como construir um maravilhoso iglu, na cena mais
natural e descontraída. Muito verdadeiras também são as cenas de caçada, pois
não dá para adestrar as presas selvagens: focas, lobos, leões-marinhos e
cachorros seguem apenas seus instintos, e não as ordens de um diretor. Mas isso
não significa que tudo é natural na caçada: embora os esquimós tivessem armas
de fogo para abater leões-marinhos, Flaherty insistiu que eles usassem arpões
rudimentares para a filmagem.
Entretanto, uma coisa Flaherty não pôde modificar: a fúria da
natureza. A natureza é uma das personagens principais do filme, uma antagonista
contra quem nossos heróis lutam diariamente, e perder uma batalha para ela
significa perder a vida. O ambiente ártico é o elemento mais autêntico do
filme, e talvez por isso o mais perigoso, assustador e aquele que mais nos
impressiona. Só de imaginar o inverno incrivelmente rigoroso do Canadá, eu fico
satisfeita por não ser uma esquimó – mesmo eles sendo o povo mais feliz do
mundo.
“Nanook, o Esquimó / Nanook of the North” não é o melhor documentário
do mundo, e é bem inferior ao melhor do cinema mudo, “Um homem com uma câmera”
(1929). Mas é pungente, é curioso, é surpreendente, é nojento, é audacioso, é
divertido e é o primeiro a desafiar os conceitos de ficção e realidade, dando
origem a um debate que nunca teve fim.
“Nanook of the North” (1922) pode ser visto no YouTube (em HD!) e no
Internet Archive (em baixíssima definição).
This is my contribution to the Second O Canada Blogathon, hosted by Ruth at Silver Screenings and Kristina at Speakeasy.
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Le, I think this is my favourite of all your reviews to date. You've provided context for us, and interesting history of the film, too.
ReplyDeleteI liked how you said nature itself is a character in this film, and indeed it is. I also laughed when you asked how many people could fit in one kayak. That is quite a scene!
Thanks so much for joining the O Canada Blogathon, and for bringing Nanook with you!
The movie raises many questions while providing a touch of history. You did an outstanding job of communicating your insights into the best and the worst of "Nanook of the North".
ReplyDeleteThanks so much for contributing this post, really enjoyed the background and context, it takes a lot to survive in those conditions. Best!
ReplyDeleteA very good post, Le! I may have to turn in my classic film fan card, but I have to confess I have yet to see Nanook of the North!
ReplyDeleteOla querida Lê,não sabia nada sobre este filme e achei que foi uma excelente postagem pois deu a oportunidade de novo conhecimento para mim que aliás achei interessantíssimo.Saudoso e grande abraço da SU.
ReplyDeleteI did get to see Nanook a couple years ago when Turner Classic Movies aired it on a Sunday night, as part of their "Silent Sundays" when they feature a silent film. My dad used to tease my brother and I when we would bundle up in heavy coats, hats, gloves, boots, in order to play in the snow that we looked like Nanook of the North. I never got the joke until I finally saw that film. Enjoyed your post very much!!
ReplyDeleteGreat post! I saw this a number of years ago, and I appreciate all of the background information you provided. It's a fascinating movie, but you have to question how much of it is real.
ReplyDeleteObrigado pela resenha do filme. Bem escrita , crítica, sem desanimar quem quer assistir. Abraços!
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