Às
vezes temos uma grata surpresa com um filme ou alguns filmes. Isso acontece
quando um filme épico, cuja narrativa é ambientada no passado, mostra paralelos
com o presente. Este é o caso do magnífico “Os Dez Mandamentos” de DeMille de
1923 - melhor que o remake sonoro de 1956, na minha opinião. Nele, há a
história de Moisés seguida por uma história sobre os perigos de não se seguir
os Dez Mandamentos neste mundo moderno e louco. Outro filme mudo que é um épico
religioso mas faz comparações com o presente é “A Arca de Noé” (1928).
Sometimes we’re pleasantly surprised by a
movie or a couple of movies. This happens to me when an epic film, whose story
is set in the past, shows parallels to the present. This is the case of DeMille’s
magnificent “The Ten Commandments” from 1923 - better than the 1956 sound
remake, in my opinion. In it, there is the Moses story followed by a story
about the dangers of not following the Ten Commandments even in this modern,
crazy world. Another silent movie that is a religious epic but draws comparisons
with the present is “Noah’s Ark” (1928).
Nos
primeiros minutos de projeção, as cartelas de texto, retiradas diretamente da
Bíblia, nos contam sobre a construção da Torre de Babel e a adoração do Bezerro
de Ouro. Corta para os tempos modernos, e as pessoas ainda estão adorando o
dinheiro em bolsas de valores - lembre-se, este filme foi feito um ano antes da
quebra da bolsa de Wall Street em 1929. Mas a história moderna que veremos
começa antes, em 1914.
In the
first minutes of projection, the title cards, taken directly from the Bible,
tell us about the building of the Tower of Babel and the worship of the Golden
Calf. Cut to modern times, and people are still worshipping money in stock
markets - remember, this movie was made one year before the 1929 crash of Wall
Street. But the modern story we’re following starts earlier, in 1914.
Um grupo
de pessoas muito diferentes está viajando no Expresso do Oriente. Um pastor
(Paul McAllister) está lendo a Bíblia na viagem e chama a atenção das pessoas
ao seu redor. Todos zombam dele, dizendo que Deus não existe. De repente, um
raio atinge e destrói uma ponte, causando um acidente com o trem. Muitos
descrentes morrem no local, mas o norte-americano Travis (George O’Brien) e seu
amigo Al (Guinn Williams) sobrevivem e ajudam uma garota alemã chamada Marie
(Dolores Costello) a encontrar abrigo numa taverna.
A group
of very different people is travelling aboard the Orient Express. A Minister
(Paul McAllister) is reading the Bible while travelling and calls the attention
of people around him. Everybody mocks him, saying there is no God. Suddenly, a
thunder strikes and destroys a bridge, causing an accident with the train. Many
non-believers die on the spot, but the American Travis (George O’Brien) and his
friend Al (Guinn Williams) survive and help a German girl named Marie (Dolores
Costello) to reach shelter in a tavern.
A guerra
é declarada naquela noite, e Marie tem de fugir do local por ser alemã. Durante
algum tempo, Al, Travis e Marie vivem felizes em Paris, intocados pela guerra.
Quando os EUA declaram guerra, Al decide se alistar e Travis o segue, mesmo não
querendo lutar contra os alemães por causa de Marie. Marie, que é artista, se
junta a um grupo para entreter as tropas. Adivinha quem mais está neste grupo? Myrna Loy!
War is
declared that night, and Marie has to flee the place because she’s German. For
a while, Al, Travis and Marie live happily in Paris, untouched by the war. When
the United States declares war, Al decides to enlist and Travis follows him,
even though he didn’t want to fight the Germans because of Marie. When the two
boys are gone, Marie, who is an artist, joins a group to entertain the troops.
Guess who else is there in the group? Myrna Loy!
E
quando a arca de Noé entra na história, você deve estar se perguntando. Com
quase 60 minutos de projeção, quando os personagens estão em uma situação muito
difícil, nosso velho amigo pastor conta a velha história e diz que a guerra,
assim como o dilúvio, veio para exterminar o ódio e o mal no mundo - se ele
soubesse que uma guerra ainda pior estava para acontecer! A história bíblica
então se desenrola em frente aos nossos olhos, com os mesmos atores da história
principal interpretando os papéis, por exemplo: Paul McAllister como Noé,
George O’Brien como Japheth, filho de Noé, e Dolores Costello como Miriam,
criada de Noé e apaixonada por Japheth.
And
when does Noah’s Ark enter the story, you might be asking. At almost the 60
minute mark, when the characters are in a very difficult situation, our old
friend the Minister tells the ages-old story and says that the war, like the
flood, came to end hate and wickedness in the world - if only he knew a worse
war was coming! The Biblical story then unfolds in front of our eyes, with the
same actors from the main story playing the parts, for instance: Paul
McAllister as Noah, George O’Brien as Japheth, Noah’s son, and Dolores Costello
as Miriam, Noah’s handmaid in love with Japheth.
“A Arca
de Noé” é um destes curiosos filmes parcialmente falados que estrearam pouco
depois de “O Cantor de Jazz” (1927). Há efeitos sonoros, canções e até mesmo
alguns diálogos no filme. Como você deve imaginar, isso acontece porque o filme
foi planejado como uma produção silenciosa, mas o cinema falado surgiu e houve
uma mudança de planos. Com 135 minutos em sua estreia, “A Arca de Noé” sofreu
diversos cortes, com muitas sequências com diálogos que não funcionavam bem
sendo cortadas, e agora a única versão disponível tem 105 minutos de duração.
“Noah’s
Ark” is one of those odd part-talkies released a little while after “The Jazz
Singer” (1927). There are sound effects, songs and even some spoken dialogue in
the film. As you might have imagined, this happens because the movie was
planned to be a silent production, but sound came and the plans changed.
Running 135 minutes in its release, “Noah’s Ark” suffered several cuts, with
many talking sequences that didn’t work well being cut, and now the only
version available is 105 minutes long.
As
estrelas deste filme parcialmente falado tiveram experiências variadas com o
cinema sonoro. Dolores Costello fez apenas alguns filmes falados, porque ela se
casou com John Barrymore no mesmo ano em que “A Arca de Noé” foi feito. Eles se
divorciaram em 1935, quando Dolores voltou para o cinema para fazer mais nove
filmes antes de se aposentar definitivamente. George O’Brien, mais conhecido
hoje como o protagonista de “Aurora” (1927), teve uma longa carreira na era
sonora, se aposentando apenas em 1964.
The
stars of this part-talkie had varied experiences with sound films. Dolores
Costello made only a handful of them, because she got married to John Barrymore
the same year “Noah’s Ark” was made. They divorced in 1935, when Dolores went
back to cinema to make nine more movies before retiring for good. George O’Brien,
better known today as the lead of “Sunrise” (1927), had a long career in the
sound era, retiring only in 1964.
Noah
Beery, que interpreta dois papéis vilanescos, trabalhava no cinema desde 1913 e
fez uma boa transição para o falado, trabalhando em todo tipo de filme até sua morte
em 1946. Paul McAllister teve em “A Arca de Noé” seu melhor papel, e trabalhou
quase sempre sem receber crédito na era sonora. Louise Fazenda, que tem um
pequeno papel neste filme, trabalhou também nos filmes falados, mas não com o
mesmo sucesso que teve no cinema mudo. Dito isto, podemos afirmar que a pessoa
mais bem-sucedida nos filmes sonoros que também esteve neste filme foi Myrna
Loy, que tem duas falas aqui mas que se tornou uma das mais amadas estrelas na
década seguinte.
Noah
Beery, who plays two villainous roles, had been working in movies since 1913
and transitioned well to talkies, working in all kinds of movies until his
death in 1946. Paul McAllister had in “Noah’s Ark” his best role, and worked
almost always uncredited in the sound era. Lousie Fazenda, who has a small role
in this movie, worked in the sound era as well, but not with the same success
she had in silents. That being said, we can affirm that the most successful
person in the sound era who was also in this movie was Myrna Loy, who has a
couple of lines here but went on to become one of the most beloved actresses of
the following decade.
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Noah Beery
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Assim
como a maioria dos épicos da Era de Ouro de Hollywood, “A Arca de Noé” foi
muito caro. Na parte da história bíblica, há grandes multidões de pecadores,
cenários imensos e até um grande livro escrito com fogo. Obviamente, a
sequência do dilúvio é o ápice, e também a parte mais comentada do filme.
Várias fontes dizem que três figurantes se afogaram filmando a cena, um teve
que amputar a perna e quase uma dúzia quebrou costelas e sofreu outros traumas.
A quantidade de água utilizada foi cerca da mesma quantidade de uma piscina
olímpica.
Like
most epic films from the Golden Age of Hollywood, “Noah’s Ark” was very
expensive. In the Biblical story part, there are big crowds of sinners, huge
sets and even a massive book written with fire. Of course, the flood sequence
is the highlight, and also the most talked about part of the movie. Various
sources say that three extras drowned while filming the scene, one had to have
his leg amputated and almost a dozen suffered broken ribs and other injuries.
The amount of water used is said to be the same of an Olympic-sized swimming
pool.
Há uma
sequência silenciosa muito poderosa com o exército norte-americano marchando
através de Paris. Marie assiste o desfile e podemos sentir seu desconforto,
afinal, aqueles homens estavam indo matar o povo dela. Travis, animado no
começo, olha em volta e vê um soldado sem uma perna e mulheres em luto pela
perda de seus filhos e maridos na guerra. Quando ele vê Al, Travis decide se
juntar também ao exército, deixando para trás Marie de coração partido. Ao se
juntar ao desfile, Travis pergunta “Para onde vamos?” e recebe como resposta “Quem
sabe ou se importa?”.
There
is a very powerful silent sequence featuring the North American army marching
through Paris. Marie watches the parade and we can feel her discomfort, after
all, those men are about to kill her people. Travis, excited at first, looks
around and sees a soldier without a leg and women mourning the loss of their
sons and husbands in the war. When he sees Al, Travis decides to join the army
as well, leaving behind a broken-hearted Marie. As Travis joins the parade, he
asks “Where to?” and receives as an answer “Who knows or cares?”.
Além do
desastre criado por Deus, o grande dilúvio, “A Arca de Noé” fala de desastres
criados pelo homem que são igualmente prejudiciais. Obviamente, a guerra é o
maior desastre feito pelo homem, mas há também a adoração de falsos deuses. Quando
o filme compara o dilúvio divino com a guerra, ele cria um precedente muito
perigoso: ele chama a guerra de vontade de Deus, praticamente inocentando os
líderes mundiais que começaram a guerra ou mesmo dizendo que eles estavam
seguindo as ordens de Deus. Este é um discurso extremamente nocivo que o filme
infelizmente apoia.
Besides
the God-made disaster of the great flood, “Noah’s Ark” talks about man-made
disasters that are as harmful. Of course, the war is the biggest man-made
disaster, but there is also the worshipping of fake gods. When the movie
compares the divine flood with the war, it creates a very dangerous precedent:
it calls the war a will of God, practically saying that the world leaders who
started the war were innocent or were simply following God’s orders. This is an
extremely dangerous discourse that the film unfortunately backs up.
“A Arca
de Noé” foi o primeiro trabalho de Darryl F. Zanuck como produtor e, tendo
apenas 26 anos de idade, ele prometeu “fazer o maior filme já feito”. Seu
grande filme foi um fracasso de bilheteria e também não agradou aos críticos.
Entretanto, não é um filme ruim. Considerada a primeira produção notável
dirigida por Michael Curtiz em Hollywood, “A Arca de Noé” é uma surpresa
agradável que mistura - embora com resultados estranhos - o passado e o presente
de uma maneira quase única.
“Noah’s
Ark” was Darryl F. Zanuck’s first assignment as a producer and, being only 26
years old, he promised to “make the greatest picture ever made”. His great film
was a box-office failure and didn’t please the critics either. However, it’s
not a bad film. Considered to be the first notable production directed in
Hollywood by Michael Curtiz, “Noah’s Ark” is a pleasant surprise that mixes -
although with odd results - the past and the present in an almost unique way.
This is
my contribution to the Second Disaster blogathon, hosted by Dubsism and Pale Writer.