Difícil classificar um filme como “Carta de uma desconhecida”. Sim,
ele é excessivamente dramático, mas não cai nos clichês lacrimejantes dos
melodramas. Há um romance, entretanto o amor vem de um lado apenas. Noir, só na
fotografia em preto e branco que é essencial ao filme. Talvez mais certo seria
dizer que Max Ophüls, talentoso diretor alemão, deveria ser um gênero à parte.
Lisa Berndle (Joan Fontaine) é uma garota morando em um prédio velho
de Viena que se apaixona pelo novo vizinho. Até aí o enredo parece saído de um
filme de adolescentes, mas então a mágica começa. Ela se encanta primeiro pelos
instrumentos dele, um famoso pianista, e depois pela sua música. Quando ela
finalmente o encontra, é amor à primeira vista. Stefan Brand (Louis Jourdan),
entretanto, é mais velho que ela e troca de companhia feminina noturna como
quem troca de roupa.
Os anos passam, mas a paixão de Lisa não diminui. Ela se muda com a
mãe e o padrasto, mas volta a Viena depois de recusar um pedido de casamento de
um tenente. Mais uma vez ela observa Stefan de longe, até que em uma noite ele a
nota. E essa certamente é a noite mais maravilhosa da vida de Lisa.
Fica impossível fazer um resumo sem spoilers de “Carta de uma
Desconhecida” se eu for mais além no enredo. Cada minuto ocorre uma nova
surpresa, quase nunca boa. Isso já deveria ser esperado de uma adaptação de um
conto de Stefan Zweig, que também virou filme na França, na China e na
Mongólia, e ópera na Rússia. Na história, a menina se apaixona por um escritor,
não um pianista, chamado apenas de “R”. Tornar o personagem homônimo ao autor
foi uma ideia que ocorreu só quando Howard Koch adaptou o conto para o cinema,
com Zweig já morto. Stefan Zweig suicidou-se com a mulher em 1942, no Brasil.
Outra obra de referência do autor é “Brasil, o país do futuro”, um slogan não
exatamente elogioso. É impressionante como, vivendo por apenas um ano no
Brasil, ele conseguiu captar tão bem a essência do país.
Na batalha das irmãs, fico com Olivia de Havilland. Os papéis mais
conhecidos e Joan Fontaine deixam-na na condição de mulher indefesa,
impossibilitada de reagir frente aos seus problemas e procurar a felicidade. Em
“Rebecca” (1940), ela é atormentada pela lembrança constante da falecida esposa
de seu marido Maxim de Winter (Laurence Olivier) e pela tortura psicológica da
governanta Mrs Danver (Judith Anderson). Em “Suspeita / Suspicion” (1941), que
lhe deu o Oscar de Melhor Atriz, ela é a herdeira que tem motivos para
acreditar que seu marido (Cary Grant) quer matá-la. Aqui, por mais que seja
difícil de acreditar nas cenas em que ela é adolescente (Joan tinha mais de 30
anos quando fez o filme), o problema da personagem é saber que a relação
idealizada não se concretizará devido ao caráter de Stefan. E, como uma boa
mulher do século XVIII, ela deve sofrer em silêncio.
Nos bastidores |
Louis Jourdan, dez anos antes de “Gigi”, está excelente como o boêmio
que sofre ao receber a carta no começo do filme e reviver a história que é
contada em flashback. É impossível não se apaixonar por Jordan, lindo em seu
segundo filme em Hollywood, aonde chegou logo depois de fazer parte da
Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Como os créditos fazem
questão de frisar, ele foi emprestado para a Universal graças à bondade de
David O. Selznick.
Além dos protagonistas, dois coadjuvantes saltam aos olhos: John (Art
Smith), o mordomo mudo de Stefan, e Marie (Carol Yorke), a amiga de infância de
Lisa. Enquanto John aparece no filme todo, Marie está na tela por poucos
minutos, e é a vida de Carol Yorke que chama a atenção. Este foi o único filme
da moça, então com 18 anos. Ela estava em êxtase por contracenar com Joan
Fontaine, uma atriz que ela admirava. Assim como Lisa, entretanto, o sonho de
Carol durou pouco. Ela nunca voltou a um estúdio, mas teve uma carreira de
sucesso como colunista em jornais, além de um envolvimento com o mundo da moda.
Carol faleceu no mesmo ano em que Joan se aposentou do cinema, 1967, vítima de
leucemia, com apenas 38 anos. As informações surpreendentes sobre Carol Yorke
foram encontradas neste fórum do IMDb.
Carol Yorke comendo uma maçã |
Só pude falar uma coisa ao final do filme: uau. Não gosto de
melodramas, mas este não é nada exagerado nem ao menos cansativo. Não se vê o
tempo passar, de tão envolvidos que estamos com a trajetória de Lisa. Sem
dúvida, Douglas Sirk, conhecido por seus melodramas que não exatamente me
agradam, se inspirou nesta obra-prima.
Os ângulos de câmera são espetaculares, em especial ao mostrar a
suntuosa ópera ou, focalizando de cima para baixo, a escada do prédio onde vive
Stefan. Todo esse deslumbramento, entretanto, não foi suficiente para
impressionar o público americano. Embora os europeus tenham gostado do filme,
este foi um fracasso de bilheteria nos Estados Unidos. Nenhuma indicação ao
Oscar foi o resultado. Mas, como em outros tantos casos, este foi mais um
exemplo de filme à frente do seu tempo, que foi revisto e apreciado com o
passar dos anos. Joan Fontaine, apesar do fracasso inicial, considera este seu
filme favorito. E com razão.
10 comments:
não conhecia, lindas as fotos. anotado. beijos, pedrita
Oi Lê!
Fantástica Resenha, Fantástico Post.
Demorei para finalmente assistir esse clássico maravilhoso. Lembro-me de ter lido uma crítica positivíssima dele pela primeira vez em uma edição antiga da revista SET quando o mesmo foi lançado pela primeira vez em VHS no Brasil. Desde aquele instante tive interesse no filme. No final do ano passado, no entanto, comprei meu DVD lançado caprichosamente pela VERSÁTIL. O filme me arrebatou, perfeito em todos os sentidos. Se pudéssemos classificar alguns filmes com mais de 5 estrelas, esse seria de longe um desses casos!
Não conhecia a história da coadjuvante York, e também nunca tinha me atentado a essa questão do fracasso nas bilheterias americanas, o que não consigo entender, já que o filme é perfeito. Mas enfim....
Lê, estava aqui pensando em um filme clássico para assistir! Aí, você me apresenta esse filme que tem tudo para que eu goste! Obrigada :)
Adorei a sua resenha! Vou assistir :)
Beijos
Acredita que eu não me lembro se vi ou não este filme? Tenho quase certeza que sim, visto que sua resenha me lembrou inúmeras partes. Aliás, você me fez um grande favor, me despertou a vontade de assistir novamente. Um elenco desses é indispensável!
Também fiquei interessado. Adoro filmes dramáticos e que fazem chorar. Abraços.
Na época que assisti a este filme,gostei demais e me tornei fã de Louis Jourdan,para mim um dos atores mais lindos que o cinema já apresentou.Não sabia do seu fracasso de bilheteria e não entendo o porque.Brilhante postagem,querida LÊ.Meu abraço.SU
Tenho visto poucos filmes com a Joan Fontaine e não me importo com os spoilers, porque me dá ainda mais vontade de assistir, tomara que consiga vê-lo no TL cult, porque no TCM tá mais difícil. Valeu pela resenha.
Le,
Thanks so much for this excellent review. And thanks for participating in the blogathon.
Take care,
Jill
Filme lindíssimo, inesquecível... amei a homenagem! Soraya Silva.
O filme é lindo! E Joan Fontaine tem aqui a sua melhor atuação. Max Ophüls é um dos mais elegantes diretores de cinema. E ainda tem Louis Jordan lindo como nunca. Um ator que nunca teve seu talento devidamente reconhecido, aliás bem que podias fazer um post sobre ele. Parabéns pelo blog!
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