Era a noite de Natal de 2009. A única fonte de luz na sala escura era a
tela da televisão. Foi então que eu vi um filme que me marcou profundamente,
cujos diálogos e imagens continuam vivos, perfeitos, em minha mente, mesmo eu
nunca mais tendo visto o filme novamente. Que obra me causou tamanha impressão?
Aquela que considero a obra-prima de Orson Welles, o cineasta que foi de menino
prodígio a maldito em uma só encarnação: “A Dama de Xangai”, de 1947.
Em um podcast presente no curso “Into the Darkness: Investigating Film Noir”, o professor
Richard L. Edwards e seu convidado chamam 1947 de “o ano do suicídio no
cinema”. Não, nenhum artista / diretor se matou naquele ano, felizmente. O
argumento é que o ano já começou com um personagem inesquecível que imagina
como seria o mundo sem ele em “A Felicidade não se Compra / It’s a Wonderful
Life”, e os cadáveres se amontoam em outras tantas produções do ano – em especial
em filmes noir como “A Dama de Xangai”.
Além de dirigir, Orson Welles interpreta o protagonista Michael O'Hara.
Ele é um irlandês à procura de emprego que acaba contratado pelo advogado manco
Arthur Bannister (Everett Sloane), após Michael salvar a jovem esposa de Arthur,
Elsa (Rita Hayworth), de um assalto. A partir daí, uma trama de assassinato e
luxúria se desenrola.
Uma das minhas cenas favoritas no filme cita o Brasil, e eu fiquei em
êxtase quando isso aconteceu. É raro uma citação séria e profunda sobre este
país tropical e caliente, mas encontramos isso no filme graças a um
episódio interessante da história: em 1942, Orson Welles passou um tempo no
Brasil filmando um documentário, “It's All True”, que nunca ficou pronto. Ele
esteve em Fortaleza, e de lá tirou uma anedota perfeita para “A Dama de
Xangai”. A anedota gira em torno de dezenas de tubarões que enlouquecem e
começam a comer uns aos outros. Fascinante e premonitório.
Outra cena inesquecível envolve Arthur Bannister em um julgamento... usando
ele mesmo como testemunha. Aqui não importam os argumentos, as perguntas, os
diálogos: a cena existe apenas para mostrar a confusão deliciosa da justiça no
mundo do filme noir (e, por que não?,
no mundo real também) e é a situação ridícula ao extremo (sequer o juiz parecia
interessado no caso)
Mas a cena mais memorável ainda é a do clímax, que acontece em uma sala
de espelhos em um circo itinerante. A fotografia da sequência é de tirar o fôlego,
e em muitos momentos chama mais atenção que a própria ação. Os personagens se
confundem e se multiplicam na sala de espelhos, formando um quebra-cabeça tão fascinante
quanto a trama do filme (Welles se inspirou em “O Gabinete do Doutor Caligari”,
1919, para criar o cenário, e contou com ajuda do especialista em efeitos
especiais Lawrence W. Butler, que trabalhou em “O Ladrão de Bagdá”, de 1940). O
que estraga um pouco a cena (e eu só percebi após rever a cena múltiplas vezes)
é a trilha sonora assustadora e pesada que começa quando tiros são disparados.
A sequência teria ficado melhor sem música, apenas com o som dos tiros, e Orson
Welles concordava com isso: o ator / diretor ficou furioso com a trilha sonora
escolhida para a cena!
“A Dama de Xangai” é um filme de Orson Welles. Isso significa que a
filmagem foi conturbada (com direito a alugar o iate de um sempre bêbado Errol
Flynn no México), o filme ficou longo demais (155 minutos no corte de Welles),
o estúdio fez muitas alterações na sala de edição e as plateias americanas não
gostaram muito do resultado, enquanto os europeus adoraram. Mas, sendo um filme
de Welles, pode esperar que, ainda mutilado, tenha indícios de obra-prima. Ao
final, “A Dama de Xangai” se transformou nisto: uma soma de cenas memoráveis em
um filme noir que, apesar de tudo,
não deixa de ser brilhante.
This is my contribution to the “…And Scene!” Blogathon, hosted by Sister
Celluloid! And Cut!
7 comments:
acho que vi. beijos, pedrita
É um bom filme, mas considero que criou muito fama por causa dos bastidores.
A melhor cena é o tiroteio final na casa dos espelhos.
Bjos,
The fun house scene is truly unforgettable, and the film is one that stays with you as well. When Welles tells a story, he uses all his tricks.
I'd never thought of it before, but I think you're right--without music would have made it even more stunning. Still, it's unforgettable, and each time I see the film (which I have on an old VHS tape), it feels like I'm seeing another aspect of how amazing it is.
I love this movie, it is one of my favourites film noir. Rita hayworth is more beautiful than never in this movie. And as braziliam myself, I adore the reference to Brasil, it was really lovely. And there is the music Na Baixa do Sapateiro (Bahia)
by Ary Barroso on the soundtrack to complete my joy.
I re-watched this just this week and it's really grown on me. I'm glad you flagged the trial scene as well as the more obvious finale as I think it's great - I love how the shot of the chess game precedes, suggesting that we are just all pawns in a game. It's one instance where Welles' symbolism actually works. And interesting point about the music - I'll have to watch again to see if I agree!
PS - I nominated you for a Liebster award, you don't have to respond but I just wanted you to know how much I love reading your blog :)
https://girlsdofilm.wordpress.com/2015/07/12/a-liebster-award-id-like-to-thank-the-academy/
Taí um noir aclamado e que ainda não vi. Acho que esse filme é da Columbia né? Lançaram uma ou duas vezes e nunca mais, o dvd no Brasil é raro. Uma pena para aqueles que como eu só assistem filmes ripados ou on line no último caso! Ótimo post Lê! Abraços!
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