No
dia de Natal de 1964 estreava o filme mais ousado de Billy Wilder. O
diretor desafiava os limites do Código de Decência e questionava
até onde alguém iria em busca do sucesso. Em uma trama digna de
Norma Desmond, os protagonistas são interioranos nada simplórios
que buscam sucesso a qualquer preço. No final, nada saiu como Wilder
queria. Mas isso não significa que o filme não é esplêndido...
Orville
J. Spooner (Ray Walston) é um professor de piano e compositor da
pequena cidade de Climax, nos arredores de Las Vegas. Um bocado
obsessivo, ele morre de ciúmes da esposa, Zelda (Felicia Farr) e
acredita que todos estão conspirando para que ela o traia. O único
homem de quem ele não suspeita é Barney Millsap (Cliff Osmond),
frentista que é seu amigo e escreve a letra para as músicas que
Orville compõe. E é Barney que atende um cliente famoso no posto de
gasolina: o cantor Dino (Dean Martin), de passagem rápida pela
cidade. Vendo que essa é a grande chance da dupla, Barney estraga o
carro de Dino de propósito, obrigando-o a ficar na cidade por uma
noite, na casa de Orville.
O
problema é que Dino é um conhecido mulherengo. Não querendo
desperdiçar sua grande chance, mas também sem querer perder a
esposa, Orville arma um plano para fazer Zelda passar a noite fora.
Para saciar a loucura de Dino, Barney decide trazer a garçonete
Polly “a Pistola” (Kim Novak) e apresentá-la como esposa de
Orville. Ufa! Um plano que tem tudo para dar errado.
Billy
Wilder havia idealizado o filme com um elenco diferente: Jack Lemmon
como Orville, mas Lemmon tinha outros compromissos. Adicione a isso
outra mudança de última hora: Peter Sellers havia sido escalado
para o papel principal, mas sofreu um ataque cardíaco no meio das
filmagens. Ele foi afastado e Ray Walston ficou com o papel. Mas quem
é Ray Walston? Esquecido hoje, Walston era, em 1964, um ator de 50
anos que protagonizava a série de TV “Meu Marciano Favorito”, e
que teve um pequeno mas memorável papel em “Se Meu Apartamento
Falasse / The Apartment” (1960).
O
Orville de Ray Walston é um personagem interessante, cujo maior
trunfo é fazer os espectadores se perguntarem: “por que Zelda quis
se casar com este homem feio e ciumento?”. Tal pergunta jamais
seria feita se Jack Lemmon fosse o protagonista, pois mesmo louco de
ciúmes Lemmon tem um encanto pueril. Por isso, apesar de Orville ser
o centro da ação, são as atrizes da troca que têm as melhores
interpretações. Felicia Farr, esposa de Jack Lemmon na vida real,
tem em “Beija-me, Idiota” um dos melhores papéis da carreira
(sendo o outro em “Galante e Sanguinário / 3:10 to Yuma”, 1957)
e mostra seu talento através de uma mudança repentina em Zelda. E
Kim Novak, como Polly, nunca esteve tão provocante em tela. E é um
estilo diferente do provocante de “Vertigo”: Polly é sexy e
vulgar, mas uma gripe terrível a faz fanhosa e atrapalhada. Ela
aceita se passar por Zelda por causa do dinheiro, mas nem por isso se
prostituiria para Dino. Mais tarde, Wilder definiu Novak como uma
atriz que combinava as qualidades de Monroe e Dietrich. O contraste e
as semelhanças entre Polly e Zelda são dignas de serem exploradas
mais a fundo.
Dean
Martin dá vida a uma paródia de si mesmo (o carro sabotado pela
dupla é de fato o carro de Martin, e Dino
era o apelido real de Dean Martin, e até hoje fãs se referem a ele
assim) e inclusive se deixa filmar em um
concerto em Las Vegas para a cena que abre o filme. Sendo um filme
sobre música (bem lá no fundo, é verdade), as canções teriam de
ser memoráveis – fossem elas muito boas ou muito ruins. É
impossível não rir com a bizarrice de “I’m a Poached Egg”,
decorar o refrão de “Sophia” e se sentir mais leve com a
adorável “All the Livelong Day”. São três canções dos irmãos
Gershwin, que emplacam sucessos inéditos mesmo 26 anos após a morte
de George. Wilder tirou Ira Gershwin da aposentadoria e o letrista se
comprometeu a colocar letras em melodias inacabadas ou nunca
utilizadas de seu irmão George. Outro ídolo dos musicais também
teve uma pequena participação: Gene Kelly, grande amigo de Wilder,
estava visitando o estúdio quando foi convidado para coreografar uma
pequena dança entre Orville e Polly, que acontece perto do final.
Atenção
para a surpresa: “Beija-me, idiota” é remake de um filme
italiano de 1952, “Esposa por uma Noite”, estrelado por Gina
Lollobrigida. “Remake” talvez não seja a palavra correta, pois
há apenas duas coisas em comum entre os filmes: o fato de o
protagonista ser um compositor interesseiro e o tema da infidelidade
ser tratado com humor.
Wilder
sabia que seu filme teria problemas com a censura. O questionamento
principal, ainda que tratado comicamente, era: é válido vender a
sua mulher (ainda que ela seja uma impostora), a si mesmo e a sua
honra para conseguir sucesso? Preparado para lutar por seu filme,
Wilder viu “Beija-me, idiota” ser aprovado sem problemas pelo
Production Code Administration, que já não ligava muito para a tal
decência que os filmes deveriam ter. Mas quem barrou a película foi
a Legião de Decência (que muito criticou “Quanto mais quente
melhor / Some like it hot”), e, em parte graças a essa condenação
(que obrigou algumas cenas a serem refilmadas), o filme foi um
fracasso de bilheteria. O público ainda não estava preparado para
este lado de Billy Wilder.
O
filme fracassou nos Estados Unidos, mas foi aplaudido pelos mais
perspicazes europeus. As comédias de Wilder jamais foram filmes
alegres, porque sempre trataram do ridículo da vida real. O público
de 1964 não gostou de se identificar com personagens moralmente
ambíguos, pois “Beija-me, idiota”, é completamente verossímil.
Wilder, acusado de destruir a família tradicional, mais tarde atribuiu o fracasso à uma falta de polimento em
todos os aspectos do filme. Não se culpe, Sr. Wilder: sabemos que
você só estava muito à frente do seu tempo.
Mais
informações sobre a produção do filme podem ser encontradas no
imenso livro “Billy Wilder – Vida e Época de uma Cineasta”, de Ed Sikov.
This
is my contribution to the Second Annual Billy Wilder Blogathon,
hosted by Cuban-Irish duo Aurora at Citizen Screen and Kellee at
Outspoken & Freckled .
11 comments:
esse não vi. beijos, pedrita
É um filme de Billy Wilder que ainda não assisti.
Bjos
It is so funny that Kiss Me Stupid caused so much controversy on its initial release. Seen today it doesn't seem that provocative, although looking back it is easy to see why it was! Great blog post!
Gosto demais dessa comédia maluca. Mas com Lemmon e Sellers seria melhor ainda (nao sabia dessa informação). Agora o mestre Wilder afirmar que a inexpressiva Kim Novak é uma mistura de Monroe e Dietrich só pode ser gozaçao.
Interesting that this was controversial in the US but popular in Europe. Glad you flagged this for the blogathon as it's one of the few Wilder films I'm yet to see - I'm not sure why I've never felt drawn to it. Maybe now it's finally time. Wilder would be proud ;)
What a great review~ I just loved the background info you included here because I wasn't aware of those trivia tidbits. Fascinating! Thanks so much for joining our blogathon, Le!
Excellent review Le:)
It was so much fun to read about the problems Wilder had,and why the film wasn't a success.
Looking forward to read more of your posts.
Here is my post on Wilder's Sabrina:-http://wp.me/p2CkjI-13
Would be glad if you tell me what you think of it:)
It's very telling, isn't it, that this film would be popular in Europe, but not so much in the U.S. It must have been hard to make all those casting changes when you have your mind set on certain actors. I've not seen this film, but it sounds like the "stand-in" actors did a great job!
Thanks for introducing me to this film! Must see it now, :)
Great review dear. :) That's a film I haven't seen yet, but it's certainly looks like an interesting one. Well, I would like to see every Billy Wilder's films you know. ;)
Gosto muito dos filmes de Wilder, entretanto, não gosto muito dos filmes dos anos 60. Assisti recentemente Se Meu Apartamento Falasse, que por sinal é ótimo! Vou procurar assistir esse aqui, gostei da história! Abraços Lê!
Dino, era o verdadeiro nome do Dean Martin. Esse filme é uma das grandes comédias do Genial Billy Wilder.
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